segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A Forte Religiosidade Rural

Naqueles tempos em que a população encontrava-se majoritariamente no campo, levava-se uma vida muito simples e restrita às lidas da roça. Na época da moagem da cana-de-açúcar o pessoal levantava por volta das 3 horas da madrugada. Os principais produtos eram o açúcar¹, a pinga e a rapadura, esta última geralmente para o consumo familiar. Já o açúcar e a pinga eram vendidos geralmente na cidade e entregues em carro-de-boi. Embora, também se retirasse para o consumo.

Carro-de-boi de Silvino Marciano Carrijo em 1920, hoje na Praça Clarimundo Carneiro

Paralelamente a produção de açúcar, o forte era a criação de gado. Comprava-se e revendia o rebanho para outros fazendeiros e aos açougueiros da cidade. Uma parte da propriedade, também era destinada a agricultura, onde se formava lavouras de arroz, feijão, milho, mandioca, batata, etc. Essa produção era quase que exclusiva as necessidades da fazenda. As propriedades rurais eram praticamente auto-suficientes, compravam-se pouquíssimas coisas na cidade, entre elas: ferragens, querosene, arame, tecidos, chapéus para os homens, pó-de-arroz e colônias para as mulheres.  Às vezes um fazendeiro de maior posse possuía casa na cidade, a fim de resolver seus negócios e participar das festividades religiosas, principalmente na Semana Santa e em novenas.  


Fazenda Sobradinho em  Uberlândia - MG

                
 A religiosidade do povo era muito forte e simples, carregada às vezes de sincretismos e superstições. Os roceiros recorriam aos raízeiros e benzedores em geral. Especialmente naqueles locais mais afastados, onde esporadicamente se passava um vigário. Mas quando este chegava era motivo de alegria geral, o povo tinha um enorme respeito, o vigário regularizava uniões ilegítimas perante a Igreja, celebravam-se batizados, eram as chamadas desobrigas.  Nas casas também não faltavam um oratório dedicado a algum santo, onde era comum a reza do terço todos os dias.  Na época da seca, ia o povo fazer novena pedindo chuva e na oportunidade jogavam água aos pés do cruzeiro. Aos roceiros mais letrados e na ausência de livros devocionais, copiavam as orações em uma folha de papel, e guardavam-na para os momentos oportunos de recitação. Agora, havia uma oração que recebia maior destaque, era o Breve de Roma. Nele as pessoas depositavam sua total confiança, em vista de receberem proteção Divina contra vários males. Das pestes, das guerras, da fome, dos animais peçonhentos, dos inimigos, de tiros e de uma possível morte repentina, segundos eles sem o arrependimento dos pecados. 
                 
Mudesto Ferreira de Rezende 
Exemplificando a situação, citarei Mudesto Ferreira de Rezende (*1883 +1953), numa de suas andanças pelo mato, foi ofendido por uma cobra.  Isso ocorreu em princípios de 1912, ficou em péssimo estado de saúde. Sua cura foi atribuída pelo fato de que algumas horas depois ele teve vômitos que teriam colocado o veneno para fora.  Passado o susto e a recuperação, Mudesto fez uma cópia manuscrita do Breve de Roma, numa folha pautada que havia comprado na cidade. Depois de pronta, dobrou a folha em várias partes e pediu para que sua mulher, Thereza Maria de Jesus fizesse uma espécie de capanga² de algodão, para guardá-la. Mudesto passou a rezar o Breve de Roma todos os dias, em agradecimento a Deus por ter sobrevivido. E trazia a referida oração junto ao corpo, para protegê-lo contra novos perigos. Isso ocorreu há 98 anos atrás, na Fazenda Jardim em Uberlândia e só pôde ser descrito, pela guarda e conservação da cópia manuscrita da oração³. Segue-se abaixo o fac-símile da mesma.




Santissimo Breve de Roma
Sendo muito grande os perigos e as perigosas guerras e a grande peste a que está sujeita a natureza humana eu que me reconheço por homem mortal e pecador desde que fui do nada (ilegível) e malicia a natureza humana o meu ser ingrato recioso da morte temporal em pecado mortal o que Deus não permitta que eu entre nas penas eternas assim eu ingrato servo vosso peso que me deis tempo de por este Santissimo Breve nos pés  da vossa Mãi Maria Santissima para que seja bem dispachada em vosso santo tribunal. Primeiramente eu rogo e peso ao Padre Eterno que receba a supplica deste santíssimo breve com os merecimentos do seu filho nosso senhor Jesus Christo para elle me livrar este meu corpo de todos os perigos mortaes e da fúria de meus inimigos e das armas que trouxerem contra mim em todos os perigos e apertos livrai-me senhor Bom Jesus pela vossa santa encarnação pelo vosso santo nascimento pelas lágrimas de sangue que no presente chorastes pela profusão de sangue que derramastes pelo deserto pelo frio e sede que soffreste pela esmola que deste pelo jejum do deserto pelos sermões que pregaste aos vosso santo dicipulos pela instituição do santíssimo sacramento pela oração do horto pela entrada de jeruzalem pela noite da ceia pela traição de Judas pelas bofetadas que na casa de anãs vos deram. O Padre eterno que areceba a supplica pela coroa de 72 espinhos que eu vossa sacrossanta cabesa puseram pela cana verde que vos fizeram em punhar pela púrpura do escarneo que vos vestiram e onde foste pregado na cruz pelas 3 horas que na cruz viveste pelas sete palavra que nela diceste pelo amargorozo calix que bebestes pela dor que tiveste quando viu xegar a sua mãe  maria santissima e o vosso dicipulo S. joão pela recomendações pela hora que espirastes pela disida que fizeste ao inferno pela vossa maravilhosa assumção e pela vinda do espirito santo. Eu vos rogo e peço sinhor para que queira livrar e valer este meu corpo do fogo violento e das águas corente dos bixos pesonhentos das condições de má gente e de todos os perigos prezente e futuro. Senhor me livrai –me de tiros e de balas de qualquer metal e matéria sejas commigo em todos os perigos por aquelas palavras fostes que maizes disse no mar vermelho. Senhor ahi  vem meus inimigos cáia sobre elles todo medo e pavor e a forsa do vosso braso para que elles fiquem immoves como as pedra no campo enquanto possa este vosso servo nos perigos e aperto suas armas fastem e caiam por terra e o poder de Deus Espírito Santo meus inimigos sejam destruídos pelo poder da santíssima trindade e todas as armas que truxerem contra mim sejam destruídas e não tenham algum vigor contra mim sejam pelo poder de deus e da virgem Maria e de todos os santos da corte do céu patriarcha prophetas confesores virgens viúvas penitentes eremitas apóstolos evangelista S. tiago S. marcos S. matheus S. lucas S. phelipes e todos os mais apóstolos os nove coros de anjo cherubins seraphins e todas as denominações de virtude anjos arcanjos do céu valha-me o poder de S. miguel S. raphael por elle permita senhor que todos os meus inimigos tenham boca não me falem tenham mãos e não me peguem e nem ofenda tenham pés e não me alcance pelo poder da santíssima trindade santa Maria valei-me mãe dos pecadores socorei-me todos os coros de anjos sejam por mim todos os santos patriarchas sejam por mim todos os santos confesores guardai-me e confortai-me todos os santo dicipulos do senhor o meu corpo defendam todos os santos da corte do seu dos perigos me guardem S. bento seja com migo e todos os santos sejam com migo da morte repentina livrai-me senhor do ferro agudo livrai-me senhor das armas de fogo livrai-me senhor de tiros e balas livrai-me senhor de todas as pesiças livrai-me senhor deus a quem venero assim passarei por todos os meus inimigos sem ser visto e ofendido pelo poder de deus padre e deus filho e deus espírito santo amem maria santíssima seja commigo e Jesus Maria e José  sesta-feira da paixão 5 de Abril de 1912 Pertence este Breve de Roma a Modesto Ferreira de Rezende


NOTAS

¹ No Engenho Banguê, localizado na Fazenda Sobradinho e de propriedade de Mudesto Ferreira de Rezende produziu-se segundo a Coletoria das Rendas Federais em Uberlândia no ano de 1944, a importância de 3 toneladas de açúcar. 

² Segundo o dicionário Aurélio, capanga é uma bolsa pequena que se usa a tiracolo. Ou ainda, uma pequena bolsa de mão, utilizada, sobretudo por homens.

³  Há de se observar que na referida oração há ausência de pontuação, grande quantidade de erros gramaticais e a falta de concordância, visto que naquela época pouquíssimas pessoas freqüentavam os bancos escolares, ainda mais as que residiam no campo. Ormezinda Ferreira Gomes foi quem guardou e conservou a oração por vários decênios, desde que a recebeu de seu pai Mudesto Ferreira de Rezende. Ela nasceu na Fazenda Jardim em Uberlândia, aos 23/08/1923, hoje reside na cidade, juntamente com sua filha Abadia Alves Ferreira.


 REFERÊNCIAS

CARDOSO, Waltecir J. Entre Parentes: História e Genealogia. Uberlândia: Composer, 2005.
Acervo Onofre Rezende – Seção de Documentos – Anápolis – GO
Depoimento oral colhido de Ormezinda Ferreira Gomes, 2009

FOTOS

Acervo Onofre Rezende - Anápolis - GO


* Daniel Alves Rezende é graduando do Curso de História da Universidade Estadual de Goiás,  pesquisador e mantenedor deste blog. É permitido o uso das informações, desde que seja citada a origem do conteúdo.

4 comentários:

  1. Jamais lí coisa tão maravilhosa. Muito bom ter escrito isso para reavivar, em Uberlância, a Fé. Estive recentemente no mosteiro das clarissas em Uberlandia, e conversando com uma das freiras que me atendeu falamos sobre a crise profunda que se encontra em Uberlândia. Especialmente entre as classes "de dinheiro" essa crise é muito profunda e lastimável. Parabéns por esta postagem. Gostei muito mesmo.

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  2. ONDE ESTA ESCRITO (ilegivel) é (por minha miseria e malicia)

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  3. Essa oração é maravilhosa, conheço desde de adolecente,quando um senhor me deu uma cópia rezo todos os dias, se não rezar sinto um vazio .Ela é tudo pra mim.

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  4. Minha mãe acaba de encontrar nos guardados perdidos dela exatamente essa oração, conforme descrito na matéria ela está num papel grosso, na cor marrom dos papéis de pão, uma caligrafia bem típica da época, com caneta nanquim, está dobrada em várias partes dentro de um pequeno envelope de plástico, no final meu falecido avô escreveu "cópia em 18-07-50". Ele sempre foi do interior de São Paulo e desde menino trabalhando na roça, era semi analfabeto.

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