quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Memória e oralidade de família

A memória social ancorada na velhice é fonte de pesquisa e análise da sociedade e as suas transformações. Isso só foi possível com o auge da História Cultural, ainda que encontre resistência dentre por certos grupos. A função social exercida durante a vida ocupa parte significativa da memória dos velhos. A memória é uma construção de momentos vividos, o passado. Na velhice, as pessoas tornam-se a memória da família, do grupo e da sociedade. Enfim é o passado daqueles que já não são mais membros ativos da sociedade, mas que já foram.

A juventude não se ocupa das lembranças e do passado, deles a sociedade (capitalista) espera produção, já dos mais velhos espera-se somente a lembrança, a volta ao passado vivido ou relatado por seus antepassados. A escrita da História passou por significativas mudanças, com a validação de outras fontes até então, não aceitas. As fontes escritas não são menos inverídicas do que as fontes orais, porém devem ser analisadas criticamente. Sendo um critério concebível a prática historiográfica como científica.

Minha tia-avó Valdete Maria de Rezende, nasceu em Uberlândia – MG aos 11 de julho de 1941, nos contou diversas histórias sobre seu bisavô paterno chamado Elias, porém não chegou a conhecê-lo. Disse que foi proprietário de muitas terras e também de muitos escravos na Fazenda Marimbondo em Uberlândia. Entre os seus escravos, havia uma escrava doméstica por nome Lúcia. Num certo dia alguns compadres vão visitá-lo em sua fazenda, ele pediu a escrava Lúcia que passasse um café para as visitas. Conversa vai, conversa vem e Lúcia apareceu no salão com a bandeja de café, todos pegaram a sua xícara e degustaram o café, porém sentiram um gosto estranho, mas nada falaram. Era costume da época deixar um restinho na xícara, assim que todos foram embora, Elias começou a virar uma por uma, quando deparou com um pequeno pedaço de fumo no fundo da xícara. De imediato deu um grito em Lúcia, ela rapidamente apareceu no salão. Pediu desculpas e que aquilo não ocorreria mais, e terminou por aí.

Naqueles tempos as carnes e a gordura em guardadas em grandes potes de barro, para que durassem mais tempo e não perdessem. A escrava Lúcia informou a Elias que as carnes e a manteiga estavam acabando, e que seria necessário matar uns dois porcos. Ele foi a despensa conferir o que ela havia falado, constatou que estava abaixo da metade do pote, porém o seu espírito sovina falou mais alto. Disse que era para esperar mais um pouco, que não matasse os porcos e deveria economizar o restante. Quando estivesse no limite, daria o andamento para a matança dos porcos.

Alguns dias se passaram e Elias estava perto do rego d'água abaixo do quintal, percebeu que as águas do rego estavam tingidas de sangue, decidiu acompanhar o rego acima para ver o que estava acontecendo. Chegou a varanda, onde também era uma espécie de cozinha, e lá estava a escrava Lúcia com os porcos mortos, um já estava na tacha fritando e outro ela estava lavando as miudezas na bica d'água. Ele sopitou de imensa raiva e de imediato gritou com Lúcia, falou que não toleraria tamanho atrevimento, pois havia desobedecido as ordens dadas por ele . Buscou o chicote e castigou a coitada da Lúcia, ela só queria comer um bom pedaço de carne. Que Deus os tenham.

Essas histórias familiares nunca puderam ser comprovadas. Quando fui a Uberlândia pesquisar sobre a família no arquivo da Catedral Santa Terezinha, encontrei diversos documentos. Entre eles o batistério de Elias Rodrigues Martins datado de 30 de setembro de 1859, havia nascido no dia 21 do mesmo mês. Era filho de Francisco Martins Carrejo e Delfina Alves Rodrigues e os padrinhos foram Manoel Martins Carrejo e João Alves Martins. E no livro dos escravos, o que eu encontrei? O registro da escrava Lúcia, realmente pertencia a Elias, quer dizer a referida escrava existiu e essa história aqui relatada, pode ter acontecido realmente. Os documentos encontrados referendaram em partes a história oral contada em nossa família.


A memória apóia-se sobre o “passado vivido”, o qual permite a constituição de uma narrativa sobre o passado do sujeito de forma viva e natural, mais do que sobre o passado apreendido pela história escrita”.

Halbwachs


Fontes bibliográficas:


BOSI, Ecléa. Memória e sociedade - lembranças de velhos. 3ed. São Paulo: Cia das Letras, 1994.

REZENDE, Valdete. Relatos orais colhidos em 2007. Anápolis - Goiás

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